“Eu sou Alícia. Uma mulher preta, extrativista, pescadora e mãe de seis preciosidades”.
Alícia Salvador demonstra força logo quando se apresenta, destacando a sua raça, a sua ancestralidade e toda a coragem de ser uma mãe resiliente. Hoje, aos 37 anos, nascida na cidade de Jandaíra (Bahia), Alícia, ainda menina, fez do povoado Pontal (Indiaroba) seu porto seguro, quando sentiu-se abraçada pelas paisagens paradisíacas do lugar e pelo acolhimento de uma comunidade extrativista. Foi com a cata da mangaba que ela aprendeu uma palavra que leva para toda a vida: organização.
“A luta pela sobrevivência sempre foi assim. Eu, desde pequena, vendo como meus pais viviam, como eles lutavam para sobreviver, desde o cultivo da mangaba, do marisco, da pesca. Eu sempre tive essa geração forte dentro do meu sangue. Só que o despertar da luta pela preservação do meu modo de vida aconteceu depois de um diálogo com dois pesquisadores da Embrapa. Eles chegaram em minha casa em 2002 e na conversa eu entendi que para poder preservar essa cultura e todo esse conhecimento de vida, que eu já tinha aprendido com meus avós e com meus pais, eu precisava de organização, de luta. Foi aí que eu comecei a organizar o Movimento das Catadoras de Mangaba, que é o meu segmento, onde hoje eu me identifico, com as Catadoras de Mangaba, com as pescadoras, com as marisqueiras, mulheres extrativistas e das águas”.
Uma palavra não dita, mas implícita na apresentação de Alícia é “liderança”. Com a organização e o entendimento do empoderamento das mulheres e da importância da preservação das mangabeiras, Alícia se tornou uma liderança feminina em sua comunidade. Essa tarefa desempenhada com alegria de ser uma líder implica também em observar as necessidades da comunidade que sofre com a degradação ambiental.
Localizado no litoral Sul de Sergipe, Pontal é um lugar para quem quer viver o turismo sensorial, vivência única, cheia de significados e símbolos afetivos, proporcionando a interação dos visitantes com a natureza e com os moradores, sendo um diferencial que não se encontra em muitos lugares. De modo geral, o que os olhos conseguem ver sobre o povoado Pontal são as belezas naturais e o povo acolhedor.
Banhada pelo Rio Real, a comunidade é ponto de travessia para Mangue Seco, na Bahia, onde foi gravada a novela Tieta, em 1989. Pontal não é só cenário de novela ou a paisagem dos sonhos, é onde a vida acontece para mais de 16 mil pessoas.
Como não poderia deixar de ser, os desafios próprios de quem vive na fronteira do mundo contemporâneo com seus paradoxos, avanços e recuos, também emolduram a vida das Catadoras de Mangaba do lugar, que enfrentam a especulação imobiliária, grande responsável pela devastação das áreas de plantas nativas, para a construção de resorts e condomínios de luxo, destruindo assim, o meio de sobrevivência de centenas de famílias. Alia-se a isso, o aumento dos viveiros de camarão, que provoca a privatização das áreas de passagem da população local, impedindo o acesso a espaços que antes eram públicos, bem como a salinização do solo, que destrói a terra, as águas e o mangue. Essas e outras questões que são também direitos básicos das pessoas do povoado Pontal tocam Alícia de forma direta.
“Minha comunidade é minha vida, meu porto seguro, a gente que é liderança está indo de canto a canto, mas quando a gente retorna para a comunidade, a gente revigora as nossas forças, o ar daquela comunidade é completamente diferente de todos os outros lugares. A minha comunidade para mim é isso, a gente pode passar muitos dias fora tentando conquistar alguma coisa, construir alguma política pública para todas, e aí a gente volta cabisbaixa porque a gente não conseguiu, pisa na comunidade e a vibração é outra, o pensamento é: Desistir jamais! Ser liderança é ser tudo que a comunidade precisa e que os filhos precisam, as novas gerações, para poder continuar existindo e resistindo”.
Alícia aprendeu ao longo da vida que a união de muitas forças e habilidades podem fazer com que as pessoas cheguem ainda mais longe. Assim, após a organização com as Catadoras de Mangaba do estado, foi observada a necessidade de fortalecimento de outras mulheres que exercem diferentes ofícios. Em 2018, iniciou-se o projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe, proposto pela Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai), da qual Alícia é presidente. Em parceria com a Petrobras desde 2010 com o projeto Catadoras de Mangaba, Gerando Renda e Tecendo Vida em Sergipe, em parceria também com a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e com o apoio do Movimento de Catadoras de Mangaba de Sergipe (MCM).
Diante dos resultados alcançados pelo projeto, a experiência com as Catadoras de Mangaba tornou-se referência para todo o estado. Sendo assim, nos dias atuais o projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe está presente nos municípios de Indiaroba, Estância, Barra dos Coqueiros, Japaratuba, Carmópolis, Pirambu e Divina Pastora.
São bordadeiras da renda irlandesa, catadoras, marisqueiras, artesãs da palha do ouricuri e artesãs de outros produtos manuais que se encontram em uma rede de solidariedade. Alícia conta com alegria os momentos de interação com as mulheres do projeto e destaca como a sua relação com elas mudou em todos os ambientes em que está inserida.
“A solidariedade tem muitos sentidos. Quando a gente vê uma mulher em uma comunidade, a gente conversa com ela e sente o poder que ela tem e ela mesma não consegue ver, se sentindo para baixo, sentindo que é menor que a outra. Quando a gente começa a conversar e diz: observe quem é você, do que você é capaz, o que você faz, até onde você já chegou e pode chegar. Tudo que a gente faz no projeto passa por essa palavra ‘solidariedade’. Você abraça a outra e consegue fazer com que ela se enxergue enquanto mulher, enxergue seu valor, quem ela é, tudo isso está nas ações com as nossas próprias companheiras, isso é solidariedade. Quando a gente chega em nossas comunidades e começa a dialogar, a ouvir a situação que a outra mulher está passando, a gente tenta se mobilizar de alguma forma para ajudar”.
Alícia destaca também a forma de atuação do projeto e como isso impacta a vida das mulheres. “A nossa vivência é de solidariedade com a outra, com o próximo, com aqueles que estão ao nosso redor, com as que estão também em outros estados. Quando a gente vai para um momento de reunião em outro estado, ali a gente está promovendo a solidariedade, tentando buscar melhorias, tentando buscar políticas públicas para todas, não é pensando só num movimento em si, mas na vida como um todo, um movimento que já é muito amplo”.
Ao falar de sonhos, Alícia olha sempre para o horizonte, como se ela já conseguisse ver suas palavras se materializando. Uma mulher que se permite sonhar é o exemplo de uma mulher livre e dona do seu destino. Juntas elas podem caminhar para alcançar qualquer sonho individual ou coletivo.
“Meu sonho? Eu sempre costumo dizer que sonho que meus filhos e meus netos não passem pela mesma luta que a gente vem passando hoje, que as coisas melhorem no futuro. Eu sei que a luta sempre vai existir, mas espero que muitas das conquistas que a gente tem lutado hoje já tenham se concretizado e que eles lutem por pautas ainda maiores, que tenham pelo menos uma garantia de um território de vida, para sobreviverem melhor e bem mais fortalecidos. Hoje nós lutamos para que o respeito com as mulheres, a questão da igualdade de direitos, sejam colocados em prática. Eu tenho esperança que isso vai se concretizar, que vamos conseguir que nossos direitos sejam garantidos e preservados”.
A realidade de muitas extrativistas é a de constante luta por seus territórios e pela preservação dos seus modos de vida. Isso é algo que agrega outras mulheres que se identificam com o mesmo sonho, trazendo mais força na busca da concretização de pautas como a criação da reserva extrativista e do auxílio mangaba, para garantir uma vida digna para as famílias durante o período da entressafra da fruta.
A tarefa não é fácil, ainda há preconceito com a população que aprendeu com a terra e com a natureza os saberes ancestrais. Nessa longa caminhada, onde é preciso segurar em muitas mãos para conseguir chegar a lugares que são negados a essas comunidades, naturalmente surgem lideranças que se desdobram dia e noite por políticas públicas para todas e todos.
“Enquanto liderança, nos momentos em que a gente dialoga, eu sinto das companheiras que temos um sonho coletivo. O meu sonho individual é também coletivo, só que com alguns complementos. Sonho que a gente viva sem tanta luta, que a gente consiga conquistar os nossos espaços em todos os sentidos, de empoderamento mesmo, que a mulher possa fazer o que quer, como a gente fala que o lugar da mulher é onde ela quiser, que a mulher tenha o direito de vestir o que ela quiser, de usar o que ela quiser e não ser julgada como ela é pela sociedade”.
Alícia hoje representa as Catadoras de Mangaba no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, integrante da estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, uma tarefa que ela não imaginava estar à frente lá atrás, em 2002, mas que foi sendo construída com muita dedicação e aprendizado sobre a necessidade de proteger outras Catadoras e outras mulheres.
Recado de Alícia para as mulheres no mundo:
“Meu recado é que a gente não pode desistir nunca, a gente tem que ter sempre palavras positivas na nossa mente, não deixar palavras machistas nos levar para baixo, que a gente reconheça sempre o nosso valor enquanto mulher, que todos os dias a gente acorde, olhe no espelho e diga o que a gente precisa ouvir, dizer primeiro a nós, não precisar esperar do outro, que venha do outro que é muito bom, mas que nós em primeiro lugar, que a gente se olhe no espelho e diga: Eu te amo, você é maravilhosa, você pode o que você quiser! Que a gente possa levantar a nossa autoestima todos os dias sem precisar que alguém diga. Se disser, a gente agradece, mas se não disser, a gente já sabe o nosso valor, quem somos, nosso poder enquanto mulher e isso toda mulher tem que saber, quem ela é, o seu valor, sem precisar esperar do outro. Sabendo quem somos, a gente vai longe, não é qualquer palavrinha que nos deixa cabisbaixa”.
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