“Agora eu entendo que cuidar de mim é importante, que conversar é importante”.
Dilva de Souza Santos tem 54 anos, nasceu na cidade de Boquim e mora no povoado Manoel Dias (Estância) desde o ano 2000. Tia Dilva, como é chamada por todas as pessoas de seu convívio, tem seis filhos que foram criados com a cata da mangaba e a venda da fruta in natura. Ela mantém a família por perto e faz das outras pessoas da comunidade uma espécie de família também, abrindo as portas de sua casa para receber o projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe e as mulheres que desejam contribuir e aprender mais.
“Esse terreno que temos, nós conseguimos quando vendemos a nossa outra casinha, que a gente tinha lá em Salgado e compramos aqui com a ajuda de um compadre. Aqui ao redor moram meus filhos, tem minha prima que eu cedi um quarto aqui em casa para ela, tem meu irmão ali do lado também. Eu acho que tenho uns dez anjos biológicos (referindo-se aos netos e netas) e mais uns cinco ou seis de coração, porque eu tenho sobrinhos que me chamam de vó, tem o de minha amiga Karina que me chama de vó também”.
Para Dilva, compartilhar o seu terreno com outras pessoas ou a sua casa com a comunidade é uma ação necessária para contribuir com o fortalecimento das mulheres de Manoel Dias. Assim ela se tornou uma liderança que incentiva a participação nas oficinas e que mantém uma rede de solidariedade em sua comunidade.
E assim, Dilva vai se aproximando de pessoas que a consideram afetivamente e que ela trata também com muito afeto. Dilva casou cedo, está com o marido há quase 40 anos e diz que só está com ele até hoje porque não enxerga nele algumas atitudes que enxerga em outros homens que impedem suas mulheres de tocarem suas vidas. “Graças a Deus, até hoje o meu marido nunca me empatou de ir para lugar nenhum, de fazer minhas coisinhas, de trabalhar, nada. Vejo muitos maridos por aí que proíbem as mulheres de trabalharem, podendo ganhar dinheiro para dentro de casa, eu não entendia antes o porquê desse impedimento, mas depois descobri que é para manter a mulher dependente dele e ele ter poder sobre ela”.
O senso de autonomia feminista vem de dentro e se apresenta para fora através de ações de acolhimento, compartilhamento de espaço e de encorajamento de outras mulheres. Dilva é dona de si, um espírito livre com poderes de canto de sereia quando tem um objetivo. Não é à toa que o seu lar se torna o lar de todas, nem que ela sente-se satisfeita em compartilhar o seu conhecimento sobre a vida e, principalmente, sobre a natureza.
Dilva trata suas plantas como amigas e confidentes, conta que quando vai cuidar do seu quintal, conversa com elas sobre questões da vida e, durante a pandemia da COVID – 19, chorou junto às árvores mangabeiras pelas muitas mortes e pelas dificuldades enfrentadas pelas mulheres extrativistas. Dilva ensina para outras mulheres o que aprendeu com a natureza; ensina sobre o tempo de cada árvore dar fruto; de quando se pode colher sem desrespeitar o ciclo natural; sem agredir ou destruir. Dilva não costuma passar muito tempo fora de casa, mas quando acontece, ela relata a saudade de cuidar das plantas que emolduram sua casa e que ela sabe exatamente o que cada uma precisa para florescer.
Mas essa paixão pela terra não fica apenas com ela, é compartilhada com outras mulheres durante as atividades no quintal agroecológico coletivo que é cultivado em seu terreno. Quando o que plantam floresce, a divisão dos alimentos é feita por igual. Muitas mãos cuidaram da terra, das mudas, das plantas e cada uma pode pegar o alimento resultante desse trabalho.
A mangaba entrou na vida de Dilva quando ela mudou-se para Manoel Dias, vendo na fruta uma fonte de sobrevivência, assim como muitas famílias em sua comunidade. Uma forma de agradecer tudo o que a mangaba fez por ela e sua família é apresentar o sabor e a história da fruta para os viajantes. Ela sorri quando conta sobre a reação das pessoas ao serem apresentadas para a fruta que sustenta tantas famílias em Sergipe e em outros estados do Brasil.
“Quando a gente mostrava a mangaba para as pessoas de fora, alguns faziam cara de que não conhecia mesmo, quando a gente entregava e a pessoa provava, aí a gente ficava feliz, ainda hoje eu fico feliz. Eu vendo mangaba na pista, ali em frente a igreja, algumas pessoas passam e experimentam, fico feliz em ver que elas amam. Eu mesma deixo chupar à vontade, depois eu completo o balde, mas eu faço questão que eles experimentem e eles gostem”.
A sua comunidade é cercada por muita vegetação e belas lagoas, a exemplo da Lagoa dos Tambaquis, e é caminho de viajantes que desejam chegar a praias como a do Abaís, por exemplo. Toda essa riqueza ecológica chama a atenção das grandes empresas da especulação imobiliária, tornando a defesa do meio ambiente uma tarefa ainda mais árdua e perigosa para extrativistas e pescadores.
Com a chegada do projeto Catadoras de Mangaba, Gerando Renda e Tecendo Vidas em Sergipe, em 2013, o conceito de organização se fortaleceu para as mulheres da comunidade em Manoel Dias. Foi quando Dilva percebeu que era possível unir a sua fonte de renda com a possibilidade de conhecer um novo mundo de informações e aprendizados. Quando as mulheres da comunidade começaram a se organizar como Catadoras, junto às mulheres do povoado Ribuleirinha, também do município de Estância, Dilva entregava as mangabas que ela catava para que as mulheres pudessem transformar a fruta em outros produtos. Segundo ela, o sofrimento do deslocamento das mulheres de Manoel Dias até Ribuleirinha era muito grande e, por isso, cedeu um espaço em sua casa para que a mangaba fosse armazenada e as oficinas de processamento de alimentos e boas práticas pudessem acontecer. Foi dentro do projeto, junto com outras mulheres, que Dilva se reconheceu como Catadora de Mangaba.
“Eu mandava mangaba para as meninas levarem para Ribuleirinha, era um caminho longo, que elas faziam a pé com muito sofrimento e por conta disso eu cedi o quarto que tem aqui em casa para elas realizarem os cursos. Esse primeiro projeto alugou uma casa no povoado Ribuleirinha e a gente revezava as vendas com as meninas de lá, ajudava com os custos de água, luz e gás e recebíamos os mesmos cursos que as outras Catadoras recebiam. Quando surgiu o projeto Rede Solidária, em 2018, nós recebemos mais cursos de alimentos, de agroecologia, construímos o viveiro de mudas e tivemos a oportunidade de produzir para a merenda escolar. Isso tudo para nós foi uma benção”.
Para Dilva, as rodas de conversa, as oficinas e os encontros proporcionados pelo projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe a ajudaram a se abrir mais para as pessoas, a entender os direitos que nunca lhes foram expostos, a se desenvolver como Catadora de Mangaba, a enxergar que os problemas das mulheres de outros territórios eram parecidos com os seus e a transformá-la em uma líder afetiva.
Dilva acredita na transformação pessoal que o projeto trouxe e incentiva a entrada e a permanência das mulheres de Manoel Dias nas atividades, com o desejo de que as vidas delas também sejam transformadas, colocando-se à disposição para diálogos, conselhos e acolhimento. Ser uma mulher que pratica o cuidado é algo que está intrínseco a ela desde sempre, mas Dilva acredita que isso também foi um processo de transformação após o contato com outras mulheres do projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe.
“Eu não consigo te dizer o que eu represento para essas pessoas, eu não sei porque eu sou acolhedora, é de mim, não sei explicar. Tem vezes que as mulheres têm alguns problemas e querem desabafar, conversar comigo, pedir um conselho, aí eu acho que seja isso. Antes do projeto, eu ia de casa para a roça, não tinha lazer, a gente não saia para se divertir, para dançar, conhecíamos pouca gente. Eu não tinha consciência dos direitos que a gente tem na sociedade e hoje, muita coisa a gente sabe que tem direito, enquanto mulher, saber dizer não, muita coisa a gente aprendeu. Eu acho que o projeto não transformou só a minha vida, mas a de muita gente, a minha transformou bastante”.
Outra transformação na vida de Dilva foi a de compreender a importância do autocuidado. Cuidar das outras já era uma prática recorrente, mas o cuidado com ela mesma foi uma descoberta transformadora.
“A gente não tinha esses negócios de se arrumar, de pintar as unhas, de ajeitar um cabelo, era muito bicho do mato mesmo. E depois das Catadoras de Mangaba, começamos a ter reuniões, ver os problemas umas das outras e ver que se cuidar é importante. Eu mesma comprava sempre aqueles perfumes baratinhos, não era nem alfazema, não me importava muito com a aparência. Agora eu entendo que cuidar de mim é importante, que conversar é importante. Hoje em dia, eu já tenho mais cabeça para conversar com meus filhos, a gente conversa de tudo que a gente vê, muita gente aprende muita coisa com a conversa, aprende a falar melhor e se soltar mais, como no meu caso”.
Hoje, Dilva não perde uma oportunidade de estar em novos lugares apresentando os produtos das mulheres de Manoel Dias. Se arrisca a inventar novos sabores de licores, não tem medo do trabalho, acorda cedo e dorme tarde se precisar para participar de feiras e eventos. Dilva fica atenta às oportunidades não apenas pensando de forma pessoal, mas coletivamente, quer sempre que melhorias cheguem ao seu povoado e que outras mulheres experimentem a liberdade e a emancipação como ela experimentou.
Recado de Dilva para as mulheres no mundo:
Se você tem a oportunidade, estude. Estude bastante para conhecer mais sobre a vida, sobre os direitos que você tem. Seja também uma mulher que cuida das outras mulheres, que seja acolhedora, que dê conselhos, que proteja outras mulheres. Cuide de você e das outras.
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