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Mulheres Inspiradoras: Nane

 

“Eu sou uma mulher empoderada. Hoje em dia eu não dependo de homem, eu dependo do que eu faço”.

 

Roseane Joelma Lima dos Santos, conhecida como Nane em sua comunidade, tem 32 anos, nascida em Japaratuba e criada no povoado Porteira. Nane tem um filho de 14 anos, é casada e gosta de se auto afirmar como Catadora de Mangaba. Ao fazer as contas, Nane lembra que conheceu seu marido quando ainda tinha 12 anos de idade, estando com ele há 19 anos, tendo vivido muitos altos e baixos como em muitos casamentos que se iniciam cedo, mas que considera que foram momentos de reafirmação da relação entre eles.

 

Filha de um trabalhador rural e de uma Catadora de Mangaba e pescadora, Nane conta que seus pais mantiveram a casa e criaram juntos sete filhos através de muita luta e, hoje, Nane segue o exemplo de sua mãe na coragem para o trabalho. “Eu cato mangaba, cato uma florzinha da caatinga, vou no viveiro e pego uma traíra para comer. Eu sou uma mulher trabalhadora, sou ativa”. 

 

Além de ativa, Nane se define como uma mulher alegre, extrovertida e de fé. “Nasci e fui criada no candomblé por conta da minha avó. Hoje ela é umbandista, e eu continuo candomblecista. Acredito no catolicismo também, respeito todas as religiões para que todas me respeitem. Onde eu chego sou respeitada. Sou uma mãe babona, cuidadosa, não passo a mão na cabeça e não gosto de violência. Tudo comigo é na conversa. Meu filho escolheu não seguir a minha religião e eu respeito a decisão dele”.

 

O candomblé é uma religião que exalta a fé através da natureza e Nane acredita na preservação como o caminho para a sobrevivência da geração atual e das futuras, mas também como uma forma de demonstrar respeito à ancestralidade. Sobreviver é preciso em uma sociedade com casos de intolerância religiosa tão recorrentes e, desde sempre, o sincretismo foi usado como proteção. A busca pelo reconhecimento e o respeito às diversas formas de fé pode ser comparada, por exemplo, na busca pela valorização do extrativismo como trabalho. As lutas se relacionam na constante batalha por respeito.

 

Nane destaca bem a palavra respeito em suas falas, acredita na convivência pacífica entre todos os segmentos religiosos e aprendeu que mereceu todos os espaços conquistados, podendo transitar em sua comunidade sem conflitos, saudando os moradores que estão sentados em suas portas durante a tarde, sorrindo e brincando com os garotos que jogam futebol no campinho do povoado e sendo apoio para as mulheres que a procuram para desabafar.

 

As mulheres do povoado Porteira possuem muitas formas de organização e de espaços de encontro: a religiosidade, as associações, o trabalho e o futebol. Nane é a zagueira do time feminino formado por amigas que se conhecem desde a infância. “Para as mulheres aqui, o futebol é uma prática para se reunir, uma coloca no grupo ‘ei, vamos bater um babinha’, e a gente vai. Dizer que o futebol é coisa para homem é puro machismo, aqui a gente divide o campo com os meninos, cada um tem o seu horário. Mas, se a gente quiser jogar, a gente coloca eles para fora, porque a mulher agora tem vez em todo canto”, declara Nane em meio a uma gargalhada.

 

Nane entende a importância de espaços onde as mulheres sintam-se livres para dizer o que querem e para se comportar do jeito que acham que devem. Conta que a realidade ainda é de homens que tentam controlar as mulheres, mas que aprendeu que não nasceu para ser podada por ninguém.

 

O sistema patriarcal se sustenta, além de outras coisas, na submissão das mulheres. Quanto mais o patriarcado consegue exercer o controle da vida e da morte das mulheres, maior ele se torna. Quando uma delas se levanta contra isso, é apenas uma voz contra o mundo, mas quando a vontade de liberdade é compartilhada e muitas se levantam, o sistema pode ser alterado. Dentro do projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe, Nane e muitas outras mulheres ouvem e dialogam sobre a liberdade de ser e de viver como determinam, sobre a libertação das amarras do patriarcado e a importância de caminhar com as próprias pernas, decidindo os seus destinos. Esse aprendizado coletivo pode ser notado em cada gesto, em cada fala e em cada vez que uma mulher volta para a sua comunidade e compartilha o que aprendeu com tantas outras.

 

Sobre sua comunidade, Nane sorri ao pensar em como toda sua vida foi construída naquele local, onde fez amizades, pegou gosto pela prática do futebol, superou desafios, criou seu filho e aprendeu novas habilidades. Depois de uma pausa reflexiva, Nane declara com firmeza: “a vida em Porteira é ótima, aqui é um lugar de onde não pretendo sair”. 

 

Porteira é um povoado da zona rural de Japaratuba, cidade com pouco mais de 16 mil habitantes, que surgiu com famílias de trabalhadores das fazendas abastadas da região, onde muitas pessoas são agricultoras e extrativistas. Um espaço modesto quando olhado rapidamente, mas muito rico nas relações que se estabelecem entre os moradores.

 

Além do futebol, Nane se organiza na Associação de Catadoras de Mangaba do povoado Porteira, outro momento de encontro com as mulheres da comunidade. A associação tornou-se um espaço de referência para o povoado, estando de portas abertas para contribuir com a população, a exemplo de quando o telhado da Escola Municipal Papa João XXIII desabou em 2022 e as mulheres cederam o espaço da associação para que as cadeiras e materiais fossem armazenados até a reconstrução do telhado. As mulheres praticam a solidariedade dentro e fora da associação e levam o sabor da mangaba para as escolas do próprio município e de municípios próximos com a produção da merenda escolar.

 

Para Nane, o projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe tem ainda mais significado quando olhado de forma pessoal. “O projeto me mudou muito pessoalmente, eu não era essa pessoa que está aqui olhando nos seus olhos e falando, eu era muito tímida. E hoje eu sou a mulher que sou por conta do projeto. Eu gosto de sorrir, eu gosto de dançar, de cantar. Eu sou uma mulher empoderada. Já se foi o tempo em que a gente dependia de homem, hoje em dia eu não dependo de homem não, eu dependo do que eu faço”. 

 

Quando perguntada sobre seus sonhos, Nane ri por alguns minutos e fica vermelha ao responder inicialmente que não sabe dizer quais seriam. Depois de pensar mais um pouco, ela chega a uma conclusão desanimadora, a de relembrar um sonho que teve que abandonar por circunstâncias da vida, mas que espera que o sonho de seu filho possa ir em frente, se colocando como a principal incentivadora disso.

 

“Meu sonho era ser médica, mas com o passar do tempo a gente vai se adaptando à realidade. Hoje, meu filho quer ser administrador, eu incentivo ele para que ele possa realizar o sonho dele, já que eu não realizei o meu. Mas, mesmo eu não tendo realizado o meu sonho de infância, realizei outras coisas e eu me considero uma extrativista muito feliz, uma boa mãe, uma boa filha, sou feliz com o que aprendi e com o que ainda vou aprender na vida. Eu sou uma mulher feliz.”

 

Mesmo com a felicidade estampada no rosto de Nane, não podemos deixar de refletir sobre os diversos sonhos que se perdem ao longo da vida. Sonhar com uma profissão e uma condição de vida digna é possível e necessário. Mas, realizar esses sonhos sem o acesso a recursos, informações e direitos básicos faz com que muitas pessoas pensem que desistiram dos sonhos por vontade própria. Quando, na verdade, é consequência de um sistema de desigualdade em que estão inseridas. A felicidade de Nane deve sim ser celebrada, mas sabemos que a felicidade maior é a de poder realizar sonhos.

 

Recado de Nane para as mulheres no mundo:

Não dependa de homem, não abaixe a cabeça para homens. Hoje é a mulher quem dá a última palavra. Então, mulheres: lutem! Que hoje somos nós que estamos no poder.