“Eu sou primeiramente mãe, quilombola, artesã e também Catadora de Mangaba, porque a minha infância foi uma infância muito sofrida, como a de todos do povoado”.
Josilene Santos Tavares tem 41 anos e mora no povoado Alagamar, em Pirambu. Ela se apresenta como “mãe, quilombola, artesã e Catadora de Mangaba”. Desde a infância, de tudo um pouco Josilene sabe fazer. Cresceu em uma família com mais 11 irmãos, sua mãe era Catadora de Mangaba e seu pai agricultor. Ainda menina ia com a mãe fazer a cata da mangaba, pescava para comer em casa, fazia tranças da palha do ouricuri com sua avó e saia da escola com as colegas para pescar saburica (camarão pequeno). Josilene lembra que passou por muitas dificuldades na infância e que se orgulha de poder proporcionar uma outra realidade aos três filhos.
“A minha infância foi muito sofrida, como a de todos do povoado. Eu ia junto com minha mãe para o sítio catar mangaba, que era o nosso sustento. Meu pai trabalhava na agricultura e a gente para contribuir com a renda, ia pegar mangaba no sítio para vender, e naquela época não era valorizada. E hoje, graças a Deus, está sendo mais valorizada a mangaba e o artesanato. O artesanato, eu me lembro desde o tempo da minha avó, que acho que tem uns 32 anos que minha avó faleceu, e ela tinha uma casa do lado da igreja, e eu me juntava com minhas primas para fazer trança lá na casa dela. Tinha uma sala que a gente colocava a trança no chão e ia tecendo a trança. Quando terminava de tecer a trança, a gente sabia que tinha trança para um chapéu, que eram quatro braços e meio. Outra coisa que ajudou a gente aqui foi a pesca da saburica. Quando a gente ia para a escola, com nove, dez anos, a gente já saía da escola com a parceira para ir pescar, já saía assim ‘vou mais fulana’ e ia para a lagoa pescar. A gente pescava muito a saburica para sobreviver, um camarão que não cresce, aquele que faz o acarajé. O peixe, a gente pescava e comia, não era para venda, era para comer mesmo”.
Ao lembrar da infância e de todas as formas de sobrevivência que teve que encontrar no povoado, Josilene diz com firmeza que sente orgulho do que se tornou. “Hoje eu falo que sou uma mulher realizada porque eu tenho a minha casa, tenho três filhos, graças a Deus, e vejo que meus filhos não passam a dificuldade que eu passei, eu já passei muita dificuldade na minha vida. Se uma pessoa perguntar se eu tenho trauma da minha infância, eu digo que tenho de ver meu pai muitas vezes pegar um pouco de farinha, um pouco de café e passar o dia todo trabalhando para criar os 12 filhos. Meu pai criou 12 filhos sem precisar pedir nada a ninguém, criou 12 filhos de bem, que nunca fizeram coisa errada e hoje eu agradeço muito pelo homem que meu pai foi”.
Josilene se emociona sempre que fala do pai e da dor da perda de seu Manuel durante a pandemia da Covid – 19. Para ela, ele foi o exemplo de vida e trabalho que ela gostaria de ensinar a seus filhos. Mesmo com toda a dificuldade para a sobrevivência no povoado Alagamar, sua família pôde acessar os recursos naturais da comunidade para garantir o sustento e o alimento. Foram muitas privações de comida, de acesso a itens do dia-a-dia, mas seu pai nunca deixou sua família desamparada. Josilene chora ao dizer: “para mim, meu pai é meu tudo”.
Hoje Josilene está em seu segundo casamento, tem três filhos e acompanha a trajetória deles de perto, auxiliando e dando o suporte necessário para cada um. Ela conta que eles são diferentes em personalidade e sonhos, mas que são todos ótimos em entender a importância de uma família unida. Seu filho mais velho mora e trabalha em São Paulo, o do meio mora com sua mãe, dona Eliete, que já tem 83 anos e a filha mais nova, a mais sonhadora segundo ela, é dedicada ao atletismo. Sua alegria é poder proporcionar boas oportunidades a seus filhos e ver eles alcançando seus objetivos, mesmo com dificuldade e com a falta de apoio institucional, Josilene vira uma leoa quando o assunto é lutar por seus filhos.
“Digo que meu marido e eu estamos juntos por obra do Divino Espírito Santo. Ele era meu amigo e ainda continua sendo, esteve junto comigo me dando força quando passei por situações muito difíceis de machismo. Meus filhos, graças a Deus, têm uma vida mais digna. Meu mais velho tem 23 anos, mora em São Paulo, já trabalha, tenho um de 18 anos que não trabalha ainda porque aqui não tem trabalho, infelizmente tem que sair daqui para buscar trabalho fora. A vida aqui em Alagamar, o que temos é isso, o artesanato e a roça, só. Eu sou agricultora, sou trabalhadora rural, tenho meu sítio, minha terrinha que meu pai deixou. A minha filha mais nova tem 17 anos e ela sonha alto, ela faz parte do atletismo, é dedicada ao esporte, ela foi a Natal, a Alagoas, a Brasília, mas não tem o incentivo do Governo do Estado. Esses dias ela foi competir na universidade e veio com uma prata e um ouro. Ela é sonhadora, ela fala para mim que vai ser uma pessoa rica. Eu falo que o que eu tenho para oferecer é o estudo, que ela estude porque é quando a pessoa tem estudo que consegue alguma coisa”.
Josilene se apega aos estudos para poder passar um pouco mais de tempo com os filhos que estão em Pirambu. Vendo os filhos das companheiras irem buscar trabalho em outros lugares, ela tem medo da mesma sina e da solidão. “O meu de 18 quer ir trabalhar em Santa Catarina junto com o filho de Rosana, mas eu só vou deixar depois que ele tiver garantido nos estudos, vai ser bom para o futuro dele, só que eu vejo que não tem nada que eu possa oferecer aqui para ele e ele vai acabar tendo que procurar trabalho em outro lugar. Minha filha se inscreveu no Enem, espero que ela passe para ver se eu consigo que ela fique aqui, mas o sonho dela é ir para São Paulo. Uma coisa que tenho medo na minha velhice é só a solidão, mas, fazer o que? Filho é para o mundo. De qualquer jeito a gente fica sozinha. Eu penso em crescer, eu penso em um país melhor para os meus filhos, para os filhos das minhas amigas, eu penso num Brasil sem auxílio, que os jovens trabalhem para não estar passando pelo que a gente que recebe auxílio passa, pois ficam achando que é coisa de preguiçoso. É necessidade mesmo”.
No povoado Alagamar, o trabalho com a palha do ouricuri é algo ancestral, pois a atividade é ensinada de geração para geração. Quem visita a comunidade de remanescentes quilombolas ainda não reconhecidos, vê as fachadas das casas com as palhas secando ao sol. Após a retirada da palha ainda verde, os artesãos e artesãs deixam a matéria-prima exposta ao sol por pelo menos 15 dias, até que a coloração mude e elas possam começar a fazer os produtos trançados e enrolados. Atualmente, a principal fonte de distribuição ainda é com os atravessadores, que compram os itens e levam para vender em locais como o Mercado Municipal de Aracaju, mas as artesãs já estão em processo de organização com a venda digital.
Dentro do projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe, as artesãs da comunidade quilombola e do assentamento São Sebastião, receberam orientações com as oficinas oferecidas. Uma delas foi a oficina de Design em Palha, onde elas puderam pensar a confecção de novos produtos, aprenderam sobre o tingimento da palha e realizaram a Mostra Ouricuri, um showroom que aconteceu em maio de 2023, com peças de decoração das coleções pensadas por elas (Mescla e Mandalas), em que elas também aprenderam a precificação e a valorização do trabalho artesanal.
O povoado também conta com Catadoras de Mangaba entre seus habitantes, que puderam aprender a fazer novos produtos durante as oficinas de Processamento de Alimentos. Além disso, as oficinas de Agroecologia puderam contribuir para que os quintais produtivos das mulheres dessem frutos a serem compartilhados entre elas. Josilene celebra a chegada do projeto Rede Solidária de Mulheres de Sergipe ao povoado pela variedade de oportunidades e conhecimento que foram proporcionadas.
“Eu estou muito feliz com o Projeto Rede, quando fui lá na sede em Aracaju, fui bastante motivada, querendo participar mais. Eu só não vou mais vezes para as reuniões na sede porque ajudo a tomar conta da minha mãe, sou eu quem dou os remédios a ela porque ela esquece às vezes de tomar, mas quando fui me senti muito bem lá com as outras mulheres. Eu confesso que não tenho muita paciência com planta, mas, o meu quintal já está produtivo, já tinha coco, acerola, limão, banana e goiaba e recentemente a gente começou a oficina de Agroecologia e as parceiras estavam tão felizes, que foi uma festa na aula. Todo mundo ficou feliz. Eu gosto de receber minhas amigas em minha casa, eu cultivo muito a amizade, dos meus parentes também. Eu sou uma pessoa que não nego ajuda. Quando aconteceu a Mostra Ouricuri, nós ficamos muito orgulhosas do resultado final, conseguimos vender produtos a preços que jamais pensávamos que seria possível, estamos acostumadas ao valor que os atravessadores nos oferecem. Desde a Mostra a gente vem conversando mais sobre encomendas, criamos nosso Instagram para mostrar os produtos ao mundo, vieram entrevistar a gente aqui sobre nosso trabalho, estamos participando do site de e-commerce do projeto. Então, assim, são muitas oportunidades que vieram junto com o projeto Rede, mas a melhor parte é a do incentivo, das palavras de apoio e de como a gente se convence de que pode qualquer coisa, foi uma mudança na vida de muitas mulheres aqui em Alagamar”.
Recado de Josilene para as mulheres:
Quero dizer às mulheres para que elas sejam felizes, que não adianta estar num relacionamento infeliz com medo da língua do povo, porque de qualquer jeito o povo vai falar. Hoje, se o homem apronta com a mulher e ele separa, o homem sai como santo e a mulher de todo jeito vai sair como errada. O recado que eu tenho é esse: lugar de mulher é onde ela quiser.
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